22 de jan. de 2009

A lenda de Sedna


Costumo contar esta história para adultos. Trata-se de um mito do povo Inuit, que ocupa um lugar essencial na cosmogonia nórdica. Como as lendas deste povo são transmitidas oralmente, as histórias estão sempre se modificando, sendo reinterpretadas pelos contadores, embora guardem os elementos principais.


A lenda de Sedna - Parte I


Era uma vez uma jovem de grande beleza, cujo nome era Sedna; a linda moça era filha de um grande caçador de uma comunidade litorânea, e estava em idade de se casar. Muitos rapazes valorosos de sua aldeia já se haviam apresentado como pretendentes, mas ela recusara todos. O pai manifestava preocupação, pois estava ficando idoso e não poderia manter Sedna indefinidamente. O melhor destino que uma jovem esquimó pode esperar é casar-se com um caçador jovem e forte, capaz de sustentá-la com os frutos da caça e da pesca. Mas Sedna não se interessava por nenhum pretendente, parecendo esperar por alguém especial.Um dia apareceu na aldeia um visitante bem apessoado, de aparência sedutora e vestido com belas peles. Prometeu a Sedna que, se ela o aceitasse em casamento, teria sempre uma tenda limpa e confortável, peles macias para dormir e a melhor carne que o Ártico pudesse dar. Disse ainda que garantiria o sustento de seu pai, enviando-lhe periodicamente a caça que a velhice já não lhe permitia obter com tanta fartura outrora. Encantada, Sedna aceitou a proposta e foi levada por seu novo marido para uma ilha distante. Lá, descobriu a dura verdade: o homem que parecia tão bonito e simpático despiu-se das peles e mostrou ser um fulmar (ave de rapina do Ártico) disfarçado. O marido-pássaro era cruel e de péssimo caráter, mantendo Sedna praticamente prisioneira. Dava-lhe para comer apenas restos de peixe cru e, como casa, uma tenda terrivelmente suja e cheia de furos por onde entrava o vento gelado. Sedna chorava todos os dias, e o vento levava seus lamentos para muito longe. Um dia, ao ouvir os gemidos de Sedna que chegavam com a ventania, seu pai resolveu visitá-la. Desconfiava que algo não andava bem, já que nunca recebera os alimentos que o marido-pássaro um dia prometera. Saiu então, em seu caiaque, remando pelo oceano gelado, em busca da ilha para onde a filha fora levada. Ao chegar perto, ouviu nitidamente os lamentos de Sedna e apressou as remadas. Chegando lá, encontrou a filha infeliz e maltratada. Como o marido-pássaro estava longe, o pai aproveitou para fugir com de Sedna no caiaque, rumando rapidamente para a aldeia nativa. Contudo, a viagem era longa. Em dado momento, pai e filha ouviram gritos e ruflar de asas. Era o marido-pássaro que, tendo descoberto a fuga, vinha furioso, seguido por outras aves de rapina, para buscar a esposa de volta. O pai tentou remar mais rápido, mas de nada adiantou: o marido-pássaro atacou o caiaque com violência e, tocando o mar com a ponta da asa, ordenou que ondas gigantescas se levantassem, tal como nas piores tempestades. A situação tornou-se desesperadora. Em pânico, o pai de Sedna percebeu que a única forma de salvar a pele seria livrando-se da filha, já que era a ela que o marido-pássaro queria. Então, para surpresa de Sedna, o velho caçador empurrou-a no mar, para que o marido a pegasse. Mas Sedna não tinha nenhuma intenção de morrer, nem de voltar para o terrível marido: com toda a força, agarrou-se com as mãos à lateral do caiaque, num esforço para voltar para bordo. O marido-pássaro ficou furioso e invocou novas ondas ainda maiores. O pai, cada vez mais desesperado, sacou então seu facão de caça e começou a cortar os dedos de Sedna, num esforço para obrigá-la a soltar o barco. Os dedos decepados da jovem foram caindo ao mar, um a um, e transformando-se nas espécies que até hoje habitam as águas do Ártico. Assim surgiram os peixes, as baleias, as focas, os elefantes-marinhos e os outros animais que servem de alimento para o povo Inuit. Depois de perder todos os dedos, Sedna não conseguiu mais manter-se agarrada ao caiaque. Lentamente afundou nas águas, enquanto as ondas se acalmavam e seu pai conseguia fugir. Mas Sedna não morreu. Desde então vive nos abismos do oceano profundo, onde se transformou na Deusa dos Mares. A fauna do Ártico é sua companhia constante. Quando os homens atentam contra a natureza, quando se deixam levar pelo ódio e pelos interesses mesquinhos, quando não amam seus semelhantes, o peso dos pecados do povo Inuit chega ao coração de Sedna, que se põe a soluçar. Então, todos os animais do Ártico se postam em torno dela, no fundo do oceano, o que faz faltar comida para os caçadores e pescadores. As ondas se levantam, agitadas, e o vento traz tempestades. Vem então uma época de desolação e fúria dos elementos, trazendo a fome para a comunidade. Para que as coisas voltem ao normal, faz-se necessário um ritual de purificação. É quando entra em cena a xamã da comunidade (uma mulher sábia e conhecedora dos segredos da natureza) que promove um rito em que todos confessam seus erros, penitenciando-se e fazendo promessas de não mais maltratar a terra em que vivem. Então, a xamã entra em transe e vai em busca de Sedna no fundo do oceano. Conversa docemente com a deusa, relatando o arrependimento e as promessas de seu povo. Depois desembaraça e penteia os cabelos negros de Sedna, retirando deles com cuidado as algas e os caranguejos. A deusa das águas vai se acalmando aos poucos e pára de chorar. Compadecida com os homens, libera mais uma vez os animais marinhos para que subam à superfície e se ofereçam como alimento.


Imagem: SEDNA, de Raine Walker.

4 de jan. de 2009

Caribay e as cinco águias brancas


Essa história faz parte da mitologia dos Mirripuyes (antiga tribo da região dos Andes venezuelanos). Integra uma coletânea de contos de tradição oral de vários povos, fruto de uma pesquisa temática que estou realizando e que aborda o tema 'paixão'. Tradução e adaptação de Sandra Baldessin.


Esta é a história de Caribay, a primeira mulher criada. Ela era filha do ardente Zuhé (o Sol) e da pálida Chía (a lua). Caribay era formosa, manifestava-se como um gênio das florestas aromáticas. Podia imitar perfeitamente o canto dos pássaros e suas companheiras eram as flores e as árvores, com as quais passava os dias em alegres brincadeiras.Certo dia, Caribay olhava o céu quando viu cinco esplêndidas águias brancas. A beleza de suas plumas despertou a paixão na linda jovem que começou a seguir as águias por todos os lugares, atravessando vales e montanhas, seguindo, incansável, as sombras das aves que se desenhavam no solo. Afinal, chegou a um lugar muito alto, e desse local pode ver que as águias desapareciam nas alturas azuladas do firmamento. A tristeza tomou conta do coração de Caribay, pois ela desejava ardentemente adornar-se com as plumas das águias. Então, Caribay ergueu a sua voz e clamou por Chía, sua mãe. Não demorou muito e as águias surgiram novamente diante de seus olhos úmidos de lágrimas. Enquanto as imponentes aves voavam harmoniosamente, Caribay cantava com toda doçura, para atraí-las. As águias, então, encantadas pelo som adorável do canto de Caribay, se quedaram, imóveis no ar. Carybay aproveitou essa imobilidade e correu até elas, para arrancar-lhes as penas, que sua paixão exigia que possuísse. Porém, um frio glacial petrificou suas mãos antes que ela pudesse alcançar as águias. Percebeu, então, que as aves, enfeitiçadas por sua voz, ao deixarem de voar ficaram enregeladas e converteram-se em cinco enormes massas de gelo. Caribay gritou, aterrorizada. Pouco depois, Chía se obscureceu e as cinco águias despertaram. Furiosas, sacudiram as suas penas imaculadas e, assim, toda a extensão da montanha se engalanou com a belíssima plumagem branca.Os blocos de gelo do qual se libertaram as águias originaram as incomparáveis serras nevadas da Mérida. As águias simbolizam os cinco picos eternamente cobertos de neve, que são as plumas congeladas das aves. As grandes e tempestuosas nevadas que ocorrem no local são um cerimonial da natureza, que relembra o furioso despertar das águias. O sibilar do vento que acompanha a fúria das nevadas representa a doçura e a tristeza do canto de Caribay.



Imagem escaneada de: Mitos e Leyendas de Lationoamerica.




3 de jan. de 2009

A Fábula da Verdade


Quando A Providência criou a mulher, criou também a Fantasia.

Um dia, a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E tinha que ser justo o palácio onde morava o sultão Harun al-Rashid. Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, ela foi bater na porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe da guarda perguntou-lhe:- Quem é você?
- Sou a Verdade! - respondeu ela, com voz firme - Quero falar com o seu amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes!O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir.
- Senhor, - disse, inclinando-se humildemente, - uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano.- Como se chama?- Chama-se Verdade!- A Verdade! - disse o grão-vizir espantado. - A Verdade quer penetrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça! Diga a ela que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!- Voltou o chefe da guarda com o recado do grão-vizir e disse à Verdade: - Aqui não pode entrar, minha filha. A sua nudez iria ofender nosso Califa. Volta, pelo caminho de onde veio.Porém, quando A Providência criou a mulher, criou também a Obstinação.E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E tinha que ser justo o palácio onde morava o sultão Harun al-Rashid. Persistente, ela cobriu as peregrinas formas com um pano grosseiro como os que usam os mendigos e foi novamente bater na porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher vestida tão grosseiramente com trapos, o chefe da guarda perguntou-lhe:- Quem é você?- Sou a Acusação! - respondeu ela, brava. - Quero falar ao seu amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Comendador dos crentes! O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir: - senhor, - disse inclinando-se humildemente - Uma mulher desconhecida, com o corpo envolto em panos grosseiros, deseja falar ao nosso soberano.- Como se chama?- Chama-se Acusação!- A Acusação! – disse o grão-vizir, aterrorizado. Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação entrasse aqui? A perdição, a desgraça! Diga a ela que aqui não, aqui não pode entrar! Diga-lhe que uma mulher, vestida com panos grosseiros, não pode falar ao nosso amo e senhor! - Voltou o chefe da guarda com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade:- Aqui você não pode entrar, minha filha. Com estas roupas rasgadas, próprias de um beduíno rude e pobre, não podes falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid! Volta, em paz, pelo caminho de onde veio.Vendo que não conseguiria realizar seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade, e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso senhor.Mas...Quando A Providência criou a mulher, criou também o Capricho.E a Verdade encheu-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E tinha que ser justo o palácio onde morava o sultão Harun al-Rashid.Vestiu-se com riquíssimos trajes, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos árabes.Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês do Ramadã, o chefe da guarda perguntou-lhe:- Quem é você?- Sou a Fábula! - respondeu ela, em tom meigo. - Quero falar com o sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes!O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.- Senhor, disse, inclinando-se humilde, uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita a audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes!- Como se chama?- Chama-se Fábula!- A Fábula! Disse o grão-vizir, cheio de alegria. - A Fábula quer entrar neste palácio? Que entre! Bendita seja a encantadora Fábula. Cem formosas escravas irão recebê-la, com flores e perfumes. Quero que a fábula tenha, neste palácio, a acolhida digna de uma verdadeira rainha!E foram abertas as portas do grande palácio de Bagdá e a formosa peregrina entrou. E foi assim que, vestida de Fábula, a Verdade conseguiu entrar no grande palácio do poderoso Califa de Bagdá, o sultão Harun al-Rashid, Principe de todos os crentes.
Imagem: Mitologia egípcia - Maat, a deusa da verdade